Saber fazer brinquedos - resistência e alternativa de construção cultural
Paulo de Salles Oliveira 1
"... 'Brincar com a criança não é perder tempo; é ganhá-lo'.
Gostaria que esta reflexão de Helena Antipoff fosse lembrada sempre por todas as pessoas de mais de dezoito anos".
Carlos Drummond de Andrade 2
Poucos são aqueles que fazem seus próprios brinquedos.
Rareiam mas, no entanto, ainda existem. E persistem, resistentes, a não deixar perecer uma forma de associar o prazer ao trabalho, transformando diferentes
materiais em objetos lúdicos, criados e concebidos por estes artÃfices, de cabo a rabo. O consórcio entre habilidade manual e gênio criativo, mesmo amplamente abafado pela avalanche consumista, felizmente sobrevive.
Não se trata de fazer um elogio ao saudosismo ou de idealizar um passado, no qual essas práticas eram mais usuais. Trata-se, isto sim, de discernir em cada brinquedo a alma de quem o produziu. Até porque fazer os próprios brinquedos é um dos caminhos que nos levam à felicidade. E o próprio ato de fazer se transforma em exercÃcio lúdico, que anima o autor. Ou seja, o fazer já faz parte da brincadeira, mostrando que trabalho e lazer podem se apresentar juntos e associados, bem diferentemente daquilo que usualmente se supõe. Antonio Houaiss se refere ao ser criativo como homo festus, explicando que "felix significa tanto 'fértil, fecundo, criador' quanto 'satisfeito, grato, feliz'." 3
Construir os próprios brinquedos representa uma forma muito peculiar de ação, na qual trabalho e lúdico não estão divorciados - o que já sugere uma condição original. Engloba o ato de concepção e os múltiplos desdobramentos da construção, demandando entrega e absorção à atividade. As horas passam e nem se percebe.
Descobrimos a alegria nas coisas simples e em singelos brinquedos. Só que, estes, nós mesmos fomos capazes de gerar, identificando o criador com a obra realizada. A marca pessoal e insubstituÃvel da autoria indica nossa potencialidade criativa e, ao mesmo tempo, nossa recusa em apenas receber coisas prontas, que outros fizeram para nós ou que moldes e máquinas produziram para anônimos consumidores. Por isso, este fazer expressa resistência em relação à s práticas e modos de pensar tÃpicos do consumismo e,ao mesmo tempo, oferece uma alternativa concreta de organizar a vida diária sob outros horizontes.
O brinquedo artesanal, ao ser produzido numa sociedade predominantemente consumidora de bens - ávida em devorar rapidamente produtos acabados e logo os substituir - permite certa reabilitação do homem criador perante a produção cultural. Com seu fazer, transformando e dando nova feição à matéria bruta ou semielaborada, o artesão abandona o papel de mero consumidor. Deixa de lado a passividade para assumir a condição ativa de construtor do cenário cultural, associando criador e criatura nos objetos-brinquedos de sua fruição. Nenhuma criança deixaria de localizar com facilidade o brinquedo que ela fez, diante de outros, comprados ou feitos por seus colegas.
Alfredo Bosi mostra que a pessoa culta não é apenas aquela que adquiriu muitos objetos de arte ou que acumulou grande quantidade de conhecimento. Para o autor, é culto aquele que trabalha, querendo se referir aos que com sua própria ação transformam e reelaboram a matéria. 4 Essa é uma luminosa travessia, pois torna possÃvel que se realize, nas palavras de Maria Helena Külner, o transitar "da enrijecida (mas ainda presente) noção de cultura como a de um conjunto de bens ou produtos a serem distribuÃdos ou consumidos para a visão de cultura como o espaço real das relações dos homens entre si e com seu mundo, como processo ativo, permanente, natural, que não se esgota no produto ou na manifestação, embora se mantenha como produção social concreta, dentro de um momento histórico determinado".5
Importa, então, ir além da visão de cultura centrada nos artigos e objetos, passando a compreendê-la sob uma perspectiva que, sem menosprezar o produto ou tampouco a herança legada ao longo dos séculos, possa incorporar também o produtor, a figura humana que, com o seu fazer, modela, transforma, reelabora e dá nova forma aos materiais e à natureza.
Brinquedos, vestimentas, tipos de comida, danças, músicas, livros, quadros, esculturas, costumes, usos e outras tantas formações simbólicas constituem a cultura. Ela se apresenta diante de nós como um conjunto variado de tradições que recebemos de gerações anteriores. Todavia, ela também se constitui, em alguma medida, como construção. Quando se fala de artesãos de brinquedos, refere-se a milhares de homens, mulheres, jovens, idosos e crianças de hoje, pessoas que no seu cotidiano, constroem, ou ajudam a construir a produção cultural. Gente que consome e que produz; que assimila, mas também inova; que reitera, mas que igualmente questiona o real. Gente inconformada com a incondicional subordinação ao consumo e à uniformização ditada pelos padrões predominantes. Gente, enfim, que colabora e constrói a pluralidade e a heterogeneidade das manifestações culturais, partindo da riqueza e da simplicidade da expressão manual.
O artesão de brinquedos, essa figura muitas vezes esquecida em nosso meio, pode realizar uma ação social transformadora, em dupla direção: numa delas, recusa-se a abdicar de sua participação na produção de uma manifestação cultural que se expressa pelas mãos; noutra, ao optar por uma prática cultural artesanal, questiona a discriminação sancionada pela sociedade de consumo, que segrega e subordina a atividade manual à atividade intelectual.
Por mais que o paÃs tenha mudado, pode-se dizer que a concepção que procura separar os que "sabem" dos que "fazem" ainda mantém vivos muitos dos seus traços. Como ocorre, por exemplo, na visão caricatural que é reiterada acerca dos artesãos e de sua produção, pautada numa suposta excentricidade. Ou nos mecanismos de exploração dos marchands, que, a pretexto de redescobrir o valor cultural do produto artesanal, não fazem outra coisa senão explorar em seu proveito o valor econômico do mesmo. No trajeto que o brinquedo faz, vindo dos bairros da periferia, do sertão ou das feiras livres para butiques sofisticadas ou para lojas de souvenirs, seu preço sofre várias multiplicações. Ganância dos que "sabem" a repousar nos afazeres e nas atribulações dos que "fazem".
Todos estes percalços se atenuam, porém, na proliferação de sorrisos, na alegria incontida e na renovação de surpresas, sensações todas suscitadas por objetos que elaboramos para brincar. Aà está também outra lição preciosa: a produção da felicidade pode estar nas coisas simples, que nós mesmos sabemos fazer, prescindindo de dinheiro. Eis por que, brincando desta maneira, não perdemos tempo e sim ganhamos vida.
[1] Paulo de Salles Oliveira é professor titular de Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor de vários livros, entre os quais: Cultura solidária em cooperativas. Projetos coletivos de mudança de vida. São Paulo, Edusp/Fapesp, 2006 (Prêmio Jabuti 2007), Vidas compartilhadas. Cultura e relações intergeracionais na vida cotidiana. 2ª. ed. São Paulo, Cortez, 2011 e O que é brinquedo. 3ª. ed. São Paulo, Brasiliense, 2010.
[2] Andrade, C. D. de. Helena e as crianças. Folha de S.Paulo, 13-03-80.
[3] Houaiss, A. Brinquedos brasileiros. In: Oliveira, P. S. Brinquedos artesanais e expressividade cultural. São Paulo, Sesc- Centro de Estudos do Lazer, 1982, 37.
[4] Bosi, A. Cultura como tradição. In: Borheim, G (et alii) Cultura brasileira: tradição / contradição. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.
[5] Külner, M. H. O desenvolvimento cultural da criança. Cultura, BrasÃlia, (32): 84-90, abr/set, 1979.