Brinquedo Popular Brasileiro

 

Depoimento vivencial do colecionador

 

"E falam de negócios.
De escrituras demandas hipotecas
de apólices federais
de vacas paridas
de éguas barganhadas
de café tipo 4 e tipo 7

Incessantemente falam de negócios.
Contos, contos, contos de réis saem das bocas
circulam pela sala em revoada
forram as paredes, turvam o céu claro,
perturbando meu brinquedo de pedrinhas
que vale muito mais"

Os Grandes - Carlos Drummond de Andrade

 

Sou um fotógrafo apaixonado por arte-popular, especialmente pelo segmento dos brinquedos. Desde os meus 20 anos (hoje tenho 67) e no exercício da profissão, eu viajava bastante pelo interior, principalmente nas regiões norte, nordeste e sudeste, e aproveitava para pesquisar e conhecer os artistas populares das cidadezinhas. A minha casa era toda decorada com objetos e brinquedos feitos por artistas populares. E assim, pelos anos e pelas décadas seguintes, continuei a viajar e a adquirir os brinquedos. Nessas alturas, o meu estúdio fotográfico também era decorado de cima a baixo com brinquedos populares.

Quando, no início de 2010, Emanoel Araújo esteve em minha casa e conheceu a coleção, ficou encantado e decretou: -vou expor a tua coleção no Museu Afro Brasil. Argumentei que a coleção era muito particular, incompleta e exclusivamente constituída por objetos de meu interesse pessoal - só tinha brinquedos de menino. De fato, não tinha casinhas, nem mobília, nem bonecas e nem os outros diversos itens que fazem parte do universo infantil feminino. Então ele concluiu: -complete a tua coleção!

Por coincidência, eu estava com a minha exposição de fotografias "Pérolas Imperfeitas" programada para uma itinerância, naquele mesmo ano, por diversas capitais do Brasil. Aproveitei essas viagens para preencher as lacunas, conhecer novos artistas populares, adquirir peças de maiores dimensões, enfim, aumentar e enriquecer a coleção. Nessas viagens, vim a conhecer as coleções de Macao Góes, exposta no Dragão do Mar, em Fortaleza - de enorme riqueza e variedade - e a do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, em Natal - de pequeno tamanho, porém de inestimável valor simbólico e fonte encantadora de entendimento da epistemologia da infância - e pude constatar que, já naquelas alturas, a minha coleção era, no mínimo, tão valiosa, rica, diversificada, significativa e encantadora quanto as melhores do Brasil.

A exposição foi inaugurada com enorme sucesso em 20/11/2011, com 1.100 peças, entre brinquedos e representações do universo lúdico infantil, produzidos exclusivamente na região Nordeste e recebeu o título de "Brincar com Arte". Ficou em cartaz por 8 meses e, a partir dai, a coleção iniciou o seu movimento. Em Agosto de 2012 foi montada na 22ª Bienal do Livro de São Paulo e, em dezembro de 2012, em Salvador, no Museu de Arte da Bahia, onde ocupou todas as salas do andar térreo. A seguir irá itinerar por outras capitais e talvez outros países, após o que, dentro de aproximadamente dois ou três anos, se estabelecerá numa sede fixa, quando deixará de ser uma coleção viajante ou um museu de sonhos, para se tornar o Museu do Brinquedo Popular.

Para mim tem sido uma imensa felicidade constatar que, aquilo que começou apenas como um gosto pessoal, uma mania extravagante, tem todo esse poder de encantamento para as pessoas. Não importa o nível social, econômico ou cultural, a faixa etária ou a cidade, o estado ou o país de origem, todos são imensamente tocados pelo brinquedo popular. Seja por reminiscências da infância, seja pela consciência do seu valor enquanto cultura popular, seja pela curiosidade em conhecer manifestações em estado puro da alma do povo brasileiro, seja pela beleza plástica e cromática, seja pela percepção da presença do gênio criativo, o fato é que absolutamente ninguém passa indiferente diante dos brinquedos populares. Para as nossas crianças de hoje que só conhecem os jogos eletrônicos, as bonecas-que-fazem-tudo, os controles remotos, os computadores e os Iphones, é uma descoberta e um deslumbramento. Elas simplesmente ficam enlouquecidas. Não bastasse isto, tenho recebido telefonemas, cartas (!) e emails elogiando a exposição e agradecendo pelas lembranças, sentimento e emoções despertados durante a visita. Tenho recebido também convites de instituições de outros estados e de outros países, que gostariam de acolher a coleção.

Mas afinal, o que define um objeto como brinquedo popular? Antes de mais nada, trata-se de um manufaturado que, tendo sido produzido em escala artesanal, tem uma finalidade utilitária: brincar. Geralmente é o produto da conjugação entre a pobreza material e a vontade de levar felicidade a uma criança, aliada a uma plasticidade e a uma inteligência criativa que, muitas vezes, pode beirar a genialidade. De um modo geral, o brinquedo popular pode se originar de três matrizes-fonte: de um lado, todos aqueles mais básicos, produzidos por artesãos em pequenas linhas de produção (piões, ioiôs, petecas, menés-gostosos, bonequinhas e mobília em série e etc.); de outro lado aqueles feitos por parentes, amigos, vizinhos ou pelas próprias crianças, que serão as usuárias finais dos brinquedos. De um terceiro lado, aqueles feitos por artistas populares que, com seu talento e maestria, imprimem a sua marca criativa pessoal em cada um dos brinquedos que produzem. Nesta coleção vamos encontrar brinquedos que se originaram de todas essas fontes e, dentro dela, também muitas peças que alcançam o patamar da genialidade.

Desfrutem enquanto é tempo, pois com o avanço da globalização, que está nos conduzindo à uma inevitável homogeneização cultural, e também com a oferta, por todo os cantos do pais, de toda sorte de brinquedos industrializados (quase sempre importados da China, a preços impossíveis de competir), os criadores dos brinquedos populares estão em franco processo de desmotivação e este universo - que já está em declínio - poderá entrar em rápida extinção. Para evitar essa irreparável perda cultural, ações de apoio a este segmento específico da arte popular precisam urgentemente ser implementadas pelos órgãos de cultura nos níveis federal, estadual e municipal. Felizmente, algumas secretarias estaduais e municipais, notadamente de alguns estados do Nordeste, já estão articulando programas com este objetivo. Uma luz no fim do túnel mas, por enquanto, uma gota no oceano.

A circulação desta exposição por diversas capitais do Brasil tem, entre outros propósitos, a intenção de ressoar como um grito de alerta.

David Glat
Colecionador e curador da exposição

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